Hoje tive um furo.
Passava da meia-noite e eu vinha de um lugar mágico, do meio
de livros, escritores e um ator por outro quando dei cabo de um pneu num
buracão na Infante D. Henrique.
Quem conhece minimamente o meu mau feitio e a corrida de
obstáculos que é a minha vida, sabe o quanto isso me poderia deixar lixada… com
F, pois claro!
Mas hoje não. Hoje conheci o João.
“Se a senhora quiser eu mudo-lhe o pneu”
“Já trabalhei numa coisa de pneus, gosto de fazer isto”
O João teve medo que eu tivesse medo dele! Por isso, enquanto me ajudava ia falando e até
me disse que não ficasse nervosa.
“Eu sou o João, nasci em 1964 e não faço mal a ninguém.
Nasci no tempo do Salazar, mas deram-me educação. O meu pai só me deu muita
porrada, mas a minha tia deu-me educação.”
Há dias o João viu um fulano a tentar assaltar um fiat
punto, e chamou a polícia com o telemóvel. “Ele percebeu e deu-me duas cinturadas,
mas eu consegui desenrascar-me dele.”
… “Nasci em 1964 na Lourinhã, lá não havia nada, por isso
vivo aqui em Lisboa. Tenho uma pensão por causa deste braço, que ficou assim na
tropa e arrumo uns carritos”
O João ia para o armazém onde vive “ali um bocadinho à
frente” na sua bicicleta quando viu esta pobre representante da esquerda-lata- de- atum ter um furo e
seguiu-a para oferecer ajuda.
O João tem apenas mais cinco anos que eu, mas parecia ter idade para ser meu pai.
O João fez-me imediatamente recordar a bela história que o Afonso Cruz gosta de contar, de como Gandhi aconselhou um hindu a quem um muçulmano matara um filho a adoptar uma criança árabe para ultrapassar a sua dor.
O João voltou a montar a sua bicicleta, aparentemente satisfeito porque fez o que a educação lhe mandara.
Eu dei-lhe o dinheiro que tinha comigo “mas não era preciso…
bastava dar-me um euro para uma cerveja.”
Lisboa, 31 de outubro de 2013
Carla Flores
P.S. Obrigada pelas lições, Vida.
Já agora... se puder
ser, ajuda o João.
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