segunda-feira, 25 de março de 2013

Um poema por dia #25 Lugares Comuns

Entrei em Londres 
num café manhoso (não é só entre nós 
que há cafés manhosos, os ingleses também 
e eles até tiveram mais coisas, agora 
é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas 
ilhotazitas, mas adiante) 

Entrei em Londres 
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar 
de praia (isto é só para quem não sabe 
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era 
mesmo muito manhoso, 
não é que fosse mal intencionado, era manhoso 
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha 
suja. Muito rasca. 

Claro que os meus preconceitos todos 
de mulher me vieram ao de cima, porque o café 
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate 
(se fosse em Portugal era sandes de queijo), 
mas pensei: Estou em Londres, estou 
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses 
até nem se metem como os nossos, 
e por aí fora... 

E lá entrei no café manhoso, de árvore 
de plástico ao canto. 
Foi só depois de entrar que vi uma mulher 
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me 
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte. 
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e 
depois eu 

Lá pedi o café, que não era nada mau 
para café manhoso como aquele e o homem 
que me serviu disse: There you are, love. 
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou 
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois 
pensei: Já lhes está tão entranhado 
nas culturas e a intenção não era má e também 
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião 
quero lá saber 

E paguei o café, que não era nada mau, 
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta 
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto 
e depois vi as horas e pensei que o táxi 
estava a chegar e eu tinha que sair. 
E quando me ia levantar, a mulher sorriu 
como quem diz: That’s it 

e olhou assim à sua volta para o presunto 
e os ovos e os homens todos a comer 
e eu senti-me mais forte, não sei porquê, 
mas senti-me mais forte 

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós, 
que em toda a parte 
as mesmas coisas são 

Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 14 de março de 2013

Um Poema por Dia #22 Procura-se um amigo

porque o amor e a amizade são o alimento do coração, partilho um texto que a C postou há dias no facebook.

Beijocas amigas da vossa Epifânia


Procura-se um amigo
Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os ...passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 4 de março de 2013

Um Poema por Dia #20 Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny
1923-2006

sábado, 2 de março de 2013

Um Poema por Dia #19 Desfolhada Portuguesa

Corpo de linho, lábios de mosto
Meu corpo lindo, meu fogo posto
Eira de milho, luar de Agosto
Quem faz um filho fá-lo por gosto
É milho-rei, milho vermelho
Cravo de carne, bago de amor
Filho de um rei que sendo velho
Volta a nascer quando há calor
Minha palavra dita à luz do sol nascente
Meu madrigal de madrugada
Amor, amor, amor, amor, amor presente
Em cada espiga desfolhada

Minha raiz de pinho verde
Meu céu azul tocando a serra
Ó, minha mágoa e minha sede
Ao mar, ao sul da minha terra
É trigo loiro, é além Tejo
O meu país neste momento
O sol, o queima, o vento, o beija
Seara louca em movimento
Minha palavra dita à luz do sol nascente
Meu madrigal de madrugada
Amor, amor, amor, amor, amor presente
Em cada espiga desfolhada

Olhos de amêndoa, cisterna escura
Onde se alpendra a desventura
Moira escondida, moira encantada
Lenda perdida, lenda encontrada
Ó, minha terra, minha aventura
Casca de noz desamparada
Ó, minha terra, minha lonjura
Por mim perdida, por mim achada

sexta-feira, 1 de março de 2013

Um Poema por Dia #18 The Pennycandystore Beyond The El


The pennycandystore beyond the El
is where i first
fell in love
with unreality
Jellybeans glowed in the semi-gloom
of that september afternoon
A cat upon the counter moved among
the licorice sticks
and tootsie rolls
and Oh Boy Gum

Outside the leaves were falling as they died

A wind had blown away the sun

A girl ran in
Her hair was rainy
Her breasts were breathless in the little room

Outside the leaves were falling
and they cried
Too soon! too soon!

Lawrence Ferlinghetti in A Coney Island of the Mind: Poems

Um Poema por Dia #17 Cavalo à Solta

 

Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sussego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura (2x)

Ary dos Santos