segunda-feira, 7 de abril de 2014

(...) a vida nos intervalos #354

sexta feira 4 de abril de 2014

A paixão de M.

Sempre achei que trabalhar no ensino iria potenciar o meu envelhecimento  precoce devido à enorme exigência do ramo em termos intelectuais (podem rir!) e emocionais. Pode não parecer a olho nu, mas aquilo desgasta.
Por outro lado também tive sempre a esperança de que trabalhar com jovens me ajudasse a manter alguma juventude nem que fosse por conseguir acompanhar as tendências do que "está a dar"ou simplesmente o jargão da moda.
Não sou naturalmente boa juiz em causa própria mas diria que ambas as "pre-assunções" são, ainda que possam parecer contraditórias, verdadeiras. Sendo que não é menos verdade que trabalhar numa escola e ter mais de 40 anos (cumulativamente) são coisas para nos proporcionam momentos verdadeiramente prazenteiros.
Que me perdoe quem lê, mas escrever mal é muito isto: sentamo-nos para escrever uma breve reflexão acerca da Paixão de M e sai-nos uma coisa enrolada em que após uma mão cheia parágrafos não entrámos na dita.
M. tem 20 anos, está a concluir o ensino secundário, um pouco mais tarde que o habitual, não sei porquê e, sinceramente não me interessa muito. Entre as suas actividades "passeia-se" frequentemente pela Biblioteca Escolar.
A primeira vez que me recordo de M. ter encetado uma conversa comigo foi para me dizer que a biblioteca não tem interesse para ninguém e que o que era bom era ter um jornal da escola. Desafiou-me mesmo a criar um. Expliquei-lhe sucintamente porque não tinha condições para tal e devolvi o desafio: "Proponha, projecte, pode mesmo ser o chefe de redacção."
O resultado prático desta conversa do meu ponto de vista foi apenas um. Memorizei o rosto e comecei a reparar que afinal M., para quem a biblioteca não tem qualquer interesse, é afinal seu assíduo frequentador. Ironias!

E foi desta forma que eu e o meu "Chefe de Redacção" criámos alguns laços, que já permitiram que ele, do alto dos seus 20 anos tenha já traçado não só o meu perfil psicológico como o das Assistentes da Biblioteca Escolar. "A senhora por vezes está triste e isso afeta o seu comportamento aqui na biblioteca; A senhora tem graves oscilações de humor; A senhora não está feliz com a vida que leva; ..." Sorrimos, deixamos estar, que o jovem é simpático e tem uma certa piada.
Acontece que na passada sexta-feira M. entrou na biblioteca de supetão com um amigo na sua cola e em vez de se dirigir para a "ilha" dos computadores, como é seu hábito, dirigiu-se para o espaço da multimédia onde se sentou numa cadeira junto da fila de janelas de onde se pode ver a entrada da escola.
Em poucos segundos identifiquei um comportamento de "avestruz". Ao mesmo tempo que se escondia, M. olhava para a entrada da escola, sendo que todo o seu corpo transmitia uma sensação de ansiedade.
Num piscar de olhos, avaliei a situação. Diz-me a experiência que aquele tipo de comportamento tem uma de duas causas: m... da grossa, ou m... da grossa, sendo que a idade e o perfil de M. correspondem ao segundo tipo, i.e., m... da grossa devido a arrebatamento, ímpeto, entusiasmo, êxtase, aka, paixão!
Pesei prós e contras - fico calada e segura ou arrisco-me a levar a maior desanda da minha vida... mas também pode ser que o moço precise... e atrevi-me.

"Parece impossível que se tenha vindo esconder aqui! e logo de uma miúda!" Mal terminara a frase, já M. retorquia "Às vezes, quando sabemos muito, não devemos falar" - diziam as palavras, mas os olhos eram de quem queria, e muito, falar. Aproximei-me e fui dizendo que eu não sabia nada...

M. despejou rapidamente a sua história, tinha feito "o maior erro" da sua vida, ofereceu flores a uma miúda e agora - acrescentou o amigo, ela pensa que fui eu.
Nem de propósito, pouco antes eu vira as ditas flores passeando-se na escada junto à BE nas mãos de uma jovem que, preconceituosa como sou, achei demasiado jovem... Perguntei: E ela não é muito pequenina?
A resposta não podia ser melhor: Pequenina como, ela é grande... em tudo!
Não havia espaço para dúvidas, o nosso menino, das pestanas mais lindas daquela escola, está completamente apanhado pela pequena de nome estrangeiro e cabelos dourados.

Penso não mentir muito se disser que esta conversa teve lugar por volta da 1 da tarde. À sexta feira, saio às 13:20, excepto quando não saio. Foi o caso, sai da biblioteca depois das 16h. Durante as cerca de 3 horas que mediaram os dois momentos M esteve quase sempre dentro da Biblioteca, amigos vários entraram e saíram; expuseram argumentos, planearam actividades para o fim de semana, mas nada parecia tirar M da espécie de letargia que o atingira.
Muito foi dito e certamente muito mais foi sentido.
M. queria dois antidepressivos e dormir, dormir muito. Perguntava aos amigos se preferiam um líder morto ou um banana vivo... afirmando-se de seguida como um banana.
A dada altura falou-se de um namoro anterior, mandei-lhe um "e lembra-se... nessa altura também parecia o fim do mundo". M pareceu animar-se um pouco para logo se deixar cair.
A dada altura a agitação causada pelo entra e sai de amigos e conversas vivas estava a causar demasiada perturbação e acabei por, mais ou menos amistosamente, expulsá-los da Biblioteca, ordenando a M. que fosse passear as suas pestanas ao sol, porque "a vida está lá fora!".

Passava já das 16 horas quando, segura de que não voltaria a ver M e os amigos senão após o início do terceiro período, me despedi das Assistentes. À saída, não consegui conter um "Que mal terei eu feito a deus?!" - à minha frente, de volta à BE estavam M e M (o amigo "das flores"). De imediato me preparei para "enxotá-los" ao mesmo tempo que M (o amigo) aproximou o rosto do meu ouvido "Já contámos tudo à miúda".

M (o apixonado) virou na minha direcção um par olhos doces e aliviados, inspirou fundo e disse: "Contei tudo!" e, ao mesmo tempo que deixava cair os braços "desabafei". Inspirou: "Sou um homem!"

Sorriso; sorriso; sorriso; "Ela pareceu ficar super-feliz!"

 Desci a escada. No rés-do-chão cruzei-me com a "miúda" à conversa-confissão com outro dos amigos. Fiz-me o mais sonsa que poderia ser: "Que flores lindas! Faz anos?" - olhar atrapalhado. "Não..."
"Melhor ainda. Parabéns!"

Saí em direcção ao fim de semana que, sabia, não ia ter um décimo da emoção de receber um ramo de flores apaixonadas e anónimas.




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